quinta-feira, janeiro 29

Foie Gras


Tem gente que gosta, tem gente que morre por 100g. Tudo bem, cada um com seu desfrute. Eu não apreciava, e depois que soube um pouquinho do processo de produção dessa desejada pastinha, aí que impliquei de vez. E ontem entendí ainda melhor o que sente o ganso quando vem aquele socador de comida e enfia tudo goela abaixo. É uma tristeza... vc não pediu, não consentiu, e ainda tem que engolir sem protestar (no caso do ganso eu não sei, mas eu fiquei um bom tempo engasgada). Voltando a ontem e ao meu dia de ganso, os fatos: No ônibus, 9h da manhã, indo para o trabalho e, perto de entrar no Lagoa-Barra, um senhor se levanta do primeiro banco e se apresenta: Eu sou Fulano de Tal, Fulano de Tal.. tenho 60 anos, 60 anos... ele repetia cadapalavra que falava, como se decorar fosse a única responsabilidade dos ouvintes passageiros que o assistiam. Só por isso já era um tanto irritante, mas como eu não sou um exemplo de tolerância, vamos prosseguir: Ele contou (sempre duas vezes) que estava alí por ser um portador de HIV AIDS e aproveitou para falar das formas de contágio da doença; protestou contra o sistema de saúde do governo e informou nome e localização do hospital onde foi contaminado após uma transfusão de sangue. Não sei se àquela altura eu estava agoniada com o drama dele ou com a sua total invasão (pelo menos os meus pensamentos ele atropelou em cheio). Foi me dando um nó na garganta... eu lembrei dos gansos... fiquei solidária com eles. Naquele momento eu era um ganso e toda aquela história estava sendo enfiada goela abaixo num processo industrial. O homem continuou, levantou a camisa e mostrou várias marcas de tiros, não sem contar em datalhes o assalto que sofreu e todos os objetos que foram levados. Abriu o coração para todos. Nem ousei olhar para os lados ou para trás. Não ví a reação das pessoas. Fiquei com um medo descomunal, achando que ele iria me cutucar e dizer algo do tipo: não vai olhar por que? pensa que está a salvo disso? pensa que é melhor do eu? Eu nem pensava, exceto numa coisa: será que eu faria um dia uma coisa parecida? Que motivo seria tão forte?O ônibus já estava chegando na Barra - Sorria, você está na Barra - e o homem finalmente pediu a todos que colaborassem para que ele comprasse o coquetel de remédios que ele tanto precisa. No auge do meu desencanto, pensei: mas esse coquetel é grátis, o Brasil é referência mundial em tratamento da AIDS! Que importa se era mentira ou verdade? Aquilo que eu estava assistindo/engolindo era verdade, aconteceu bem na minha frente. Confia ou não, só duas opções. Bem, eu não confiei. Na verdade, eu congelei. Não conseguia nem respirar, quanto mais abrir a bolsa. Não fui uma das pessoas que contribuiu. Para amenizar, rezei por ele, rezei pelas pessoas que escutavam, pelo homem que dirigia, por mim, pela humanidade que ainda não consegue amar o próximo quando ele aparece bem na frente, certo ou errado (e eu me incluo nisso).Três moedas, três moedas. Ele repetiu desapontado! Três pessoas quiseram me ajudar e que Deus as abençoe. As que não quiseram ou não puderam, que Deus as abençoe também, mas lembrem-se: Hoje sou eu, amanhã pode ser qualquer um de vocês! E pode mesmo, ele tem razão. Só espero que não seja essa a razão pela qual nós nos empenhamos em ajudar: o medo de que aconteça conosco. Senão, vira investimento. E vai ter especulação! Deixemos isso para o cenário financeiro, para os profissionais, afinal, nesse momento não passamos de meros gansos.

Um comentário:

  1. Emilia,
    que bacana você mandando vir nessas crônicas deliciosas. Adoro ler! Dou gargalhadas, muito legal mesmo.
    Quando vamos ler no jornal também??
    Aguardo, torcendo para que aconteça em breve, pois você tá podendo!
    Beijos

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