domingo, agosto 30

Sobre viver os lutos para que eles deixem de viver em nós

Um evento súbito, uma notícia triste, nosso chão aberto, o peito doendo, as lágrimas rolando e a gente se transbordando. A maioria dos nossos lutos são agudos, traumáticos, extremamente emotivos e quase não conseguimos acreditar que passarão. Mas passam, sempre passam e sempre levam os passados junto, de forma que um dia acordamos e queremos sentir o cheiro da vida com tanta vontade que até sentimos culpa. E então, passou.
Os lutos não andam sozinhos, eles chegam em bando. O da frente é o da vez, o que acaba de acontecer. E choramos esse luto tão doloridamente que mal percebemos os outros que se aninham na nossa dor e aumentam o caldo das lágrimas. A tristeza abre portas para lembranças estranhas, dores guardadas, assuntos passados, males trancados… Quando dizemos que algo não importa e já passou, precisamos ter cuidado. Isso pode bem vir a ser um dos irmãozinhos do luto atual que haverão de aparecer quando a porta for aberta… Uma pequena mágoa, uma saudade, um adeus não dado, desculpas não pedidas… ou não aceitas, uma palavra errada, uma visita não feita… tudo vira luto se tiver importado, mesmo que tenhamos afirmado o contrário.
E um dia as notícias ruins nos visitam, porque seria injusto que só visitassem os nossos vizinhos. E nós sofremos e choramos todos os lutos guardados em nossa alma. Pelo tempo necessário para que a cura chegue, nada alivia.
É quando o tempo, se compadecendo de nós, diz que não há mais tempo para chorar e a vida urge recomeçar. Enxugadas as lágrimas que lavaram o mundo, é o momento da cura, do adeus, dos perdões, da aceitação. Aceitar os lutos como parte de nós, a parte que nos desmonta mas que ao mesmo tempo nos aproxima das nossas emoções mais fortes e profundas. Aceitar o consolo dos anjos que aparecem nos momentos ruins, estreitar os laços com quem se solidarizou com nossa dor e veio tentar sentir junto, veio deixar o tempo passar ao nosso lado, amenizando as feridas, suportar o silencio cortado pelo som tristíssimo de um choro e as inevitáveis, mas também cômicas fungadas e assoadas. Amigos anjos, irmãos anjos, anjos sem nome, ou com o mesmo sobrenome. E ainda se não houver anjos, mesmo assim haverá cura.
O luto é o amor se contorcendo de dor. A cura do luto, é o mesmo amor, mas sem dor, com saudades, mas disponível para o que tempo há de trazer.

sexta-feira, agosto 28

A roda dos dias atropela ou acompanha você?

m janeiro, fiz promessas. Fiz planos com amigos enquanto suava e tentava aliviar o calor da estação.
– Há de ser um ano bom para todos nós, dizíamos e brindávamos.
Janeiro é um mês fantástico para as relações humanas, todos carregando o frescor do ano novo, um sol que não nos deixa duvidar que estamos bem vivos, e aquela esperança de dias perfeitos que adoramos cultivar… Janeiro é a atriz hippie com tiara no cabelo.
Em fevereiro, negociei algumas promessas. Ainda verão, ainda o sol escaldante e a vida chegando morna, ainda meio de férias, demorando um pouco para entrar no ritmo. – O ano está só começando! Fevereiro é o sorveteiro sonolento.
Em março, esqueci as promessas e trabalhei muito, tanto que não tive tempo para voltar aos exercícios, mas as promessas já estavam enterradas em algum lugar. Trabalhei mais do que queria, ganhei menos do que esperava, mas março é um mês apático. Março é o gerente do banco.
Em abril, descolei uma viagem. Foi um alívio bom, uma parada estratégica, uma explosão de novas paisagens e maravilhas. Como é bom voltar ao trabalho depois de uma boa viagem! Tudo flui, nada aborrece. Quanta inspiração! Deveríamos viajar pelo menos três vezes por ano, todos nós. A vida precisa de outros cenários e culturas para se nutrir. E entre lembranças de viagem e planos para uma próxima, abril passou, e Maio o acompanhou, silenciosamente. Abril é o maquiador e Maio, a bilheteira do cinema.
Junho chegou. Meu aniversário chegou com junho. Mês feliz! Mês de muitos abraços. Junho é um mês simpático para mim. Desfruto cada dia de junho como uma fatia de bolo de chocolate. Junho geralmente me traz presenças muito mais interessantes do que presentes, mas presentes também são bem-vindos. Junho é a avó doceira.
E julho acaba com a minha festa, o abre alas do segundo semestre vem com tudo avisando que já o ano acaba e quem não fez nada até agora, tampouco conseguirá fazê-lo até o final. Julho é o inspetor do colégio.

Agosto vem sisudo, tanto que nem o clima se mete muito com ele. Era para estar frio, mas agosto reclama, então, deixa um verãozinho mesmo. Agosto mete medo em qualquer um. Conto os dias de agosto. Medo dos lutos, medo das perdas, medo do medo de agosto. Agosto é o vilão do filme.
Já consigo ver setembro, vindo mais leve, colorido, porque assim o espero.
E, de mês em mês, de dia em dia, vivemos sem perceber o quanto nos repetimos, o tanto que somos simples e infantis, rodopiando pelo calendário, pela vida, ano após ano, como éramos quando pequenos, entendendo os braços e pedindo: – De novo!
E setembro, o vendedor de algodão doce, já está chegando. De novo!

quarta-feira, agosto 26

Sim, é pessoal, lamento.

Desculpe mas não é nada pessoal. Eu falaria isso para qualquer pessoa, eu negaria aquilo para qualquer pessoa…
Quantas vezes escutamos algo parecido? Quantas  vezes já o dissemos para alguém? Eu nunca disse porque acho que tudo sempre é pessoal. São características, hábitos, trejeitos, inflexões, respostas que nos fazem rejeitar uma pessoa ou que vem dela para nós. Isso nas situações de relações, onde o que o outro sente faz alguma diferença para nós. Não nas negativas comerciais, empresariais, institucionais e todos os ais onde o verniz social é capaz de achatar uma criatura até ela deixar mesmo de ser pessoa e virar qualquer coisa que não seja pessoal.
Mas, voltemos ao bordão quando usado entre conhecidos, parentes,  amigos, amores, outra qualquer forma de relação, qual será a razão para nos acovardarmos e não falarmos a verdade, já que temos esse direito e, se formos suficientemente gentis e educados, nenhum dano causaremos? Por que achamos que repetir que não é pessoal faz o outro se sentir melhor? Não faz, isto é óbvio! No máximo faz a criatura perceber que nem sequer possui algo de individual para ser comparado e então rejeitado. Façamos a prova em nós mesmos, no espelho:
– Desculpe, não é nada pessoal, eu sou desse jeito mesmo, então acho melhor ficarmos por aqui. (Desculpe= me tire a culpa; não é nada pessoal= você não é uma pessoa; eu sou desse jeito mesmo = covarde; então acho melhor pararmos por aqui= era o que eu queria dizer mas não tive coragem, não quero estar mais com você, preciso ir).
O mais louco é que geralmente começa: Desculpe… Já de cara pede-se desculpas, ou seja, que lhe tire a culpa por dar uma baita desculpa.
Aí gente, quando for pessoal, quando for dedicado àquela pessoa – sim, e isso é extremamente pessoal – vamos combinar de não dizer a tal frase, vamos nos esforçar para contar o que pessoalmente nos desagrada, nos afasta, nos impele a dizer não, que nos obriga a cortar laços e nós. Nós que agora vamos virar eu e você, nenhum de nós merecemos dar nem receber nada que não seja pessoal.

segunda-feira, agosto 24

Não toque no meu bom humor!

Vivemos momentos bastante mau humorados, desanimadores. Momentos mal encarados.
Crise no país, corrupção, intolerâncias, politicagens, lutas (ainda) por direitos óbvios… É a tal fase do gigante que acordou mas, quando esfregou os olhinhos, achou que era melhor dormir de novo, e, como não foi possível, agora está olhando para a bagunça em volta, totalmente contrariado. A consciência desperta, mas, se fosse mais esperta, encararia tudo com um humor diferente, com o humor que muda o cenário, que pensa em alternativas, que se impõe pela presença gostosa.
A gente queria que tudo fosse diferente, que as ciclovias fossem infinitas, que nunca ficássemos doentes, que pudéssemos olhar nossos celulares sem medo de sermos assaltados, que todos os escândalos não passassem de notícias inventadas para vender jornal.
Mas não é assim e não é só isso. Para engrossar o caldo, ora estamos sem dinheiro suficiente, ora ficamos sem o afeto que queríamos, sem companhia, sem vinho, sem critérios… E ainda, a maioria de nós tem família e família por si só já é pêndulo de humores; E o computador trava, a foto não favorece, a dieta desanda, a sandália arrebenta, a ressaca maltrata, perdemos as chaves e o sorriso no rosto. Pronto, explodindo em 3, 2, 1…
Agora a reflexão: Seremos nós todos uns mau humorados?
É hora de recusar esse título. É momento de entender o passar da vida, a pressa do tempo, a feiura da testa franzida, do resmungo inútil.
O meu bom humor é particularmente debochado, mas não é ofensivo nem ácido, só gosta de fazer analogias com situações verídicas. É a minha saída, cada um tem a sua.
Já o meu mau humor é um possuidor de alma, um spray congelante, um gambá assustado. Prefiro mantê-lo longe e sedado.
A doença do mau humor se chama distimia. A cura pelo bom humor não tem nome, no máximo um apelido de terapia. Sempre damos mais peso e títulos aos vilões, impressionante isso. Nossa natureza avinagrada se manifesta a qualquer mínima contrariedade. Somos bélicos, defensivos, palpiteiros, resmunguentos.
E então, no meio de toda essa gincana que é a vida, entre rosnados e caretas, aparece uma criatura desfilando sorrisos e cumprimentos. Desacostumados que estamos, repudiamos de pronto. Colocamos na conta da alienação, do despreparo. O bom humor alheio incomoda demais! Soa como um espelho retorcido, um beliscão bem apertado, uma lição de moral bem dada. E é.
Ainda bem que sempre há uma criatura por perto que nos mostra o lado divertido das coisas, que nos instiga até arrancar um sorriso amarelo, que provoca, desafia, enxerga beleza até em raiz seca. E ainda bem que uma vez ou outra essa criatura sou eu ou você. Nem percebemos, mas assim é. Geramos uma lufada de fôlego para aturar todos os motivos que temos para nunca mais sorrir.
E, quando for o nosso dia de sorte, de um inexplicável bom humor e alguém se aproximar tentando manchar ou envenenar, possamos dizer sorrindo: Não ouse tocar no bem humor!

sábado, agosto 22

À flor da pele. Quem nunca?

“Em casa, à noite, o pai guarda os sapatos dos dois no mesmo canto, pendura os casacos dos dois no mesmo gancho… Ele serve o jantar em um prato redondo e descreve a localização dos diferentes tipos de alimento fazendo uma analogia com os ponteiros do relógio. Batatas às seis horas, ma chérie. Os cogumelos, às três horas…”
Trecho do livro “Toda luz que não podemos ver” – Anthony Doerr
Quem nunca se viu em um estado mais sensível do que o normal, enxergando drama, poesia e arte em qualquer coisa cotidiana?
Quem nunca chorou ao ler um trecho de um livro, ao escutar uma música, ganhar um abraço, um pão doce que lembra a infância, um bilhetinho de amor?
Eu chorei com esse trecho do livro, confesso. Pensei nesse pai viúvo que cria a filha cega sozinho e, entre tantos atos de amor, ainda encontra poesia e encanto para a vida de ambos. É amor demais para não se arrepiar.
Curioso é que todos esses gatilhos existem o tempo todo em todos os lugares, mas não somos capazes de nos sensibilizar com tanta frequência, com tanta intensidade todas as vezes. E quando isso acontece, dizemos que estamos à flor da pele. Eu adoro essa expressão, mesmo que alguns digam que é a porta de entrada para um colapso, surto, crise histérica… Discordo totalmente e ainda ouso dizer que o estado de flor da pele nos faz uma verdadeira esfoliação na alma, nos mostra o que somos e qual são as importâncias que devemos nutrir e guardar na vida. Quando viramos poesia e às outras poesias nos misturamos.
Hoje, voltando para casa, desci do metrô, e, bem junto de mim passaram quatro funcionários levando um homem desacordado naquelas macas de pronto atendimento. Era um homem relativamente novo, e toda aquela multidão olhando curiosa, comentando. Realmente não tenho ideia do que aconteceu. Os rapazes do metrô subiram a estação pela escada rolante levando o homem para um posto de atendimento que tem logo na saída. E eles desapareceram porta adentro. Nesse momento me veio um nó na garganta, aquela sensação de choro, de desemparo. Eu não conheço o homem, desconheço o que aconteceu com ele, mas meu momento flor da pele me desarmou, me fez pensar que nenhum de nós nunca saberá o que será o minuto seguinte. Nem o homem da maca, ninguém.
Nos resta portanto, a certeza de todo o futuro incerto, que contará com deliciosos e perfumados momentos à flor da pele.

terça-feira, agosto 18

Persistir, verbo intransigente!

Existe um provérbio chinês que afirma que “a persistência realiza o impossível”. Muitas coisas há de realizar mesmo, mas, certamente o impossível de um é o banal do outro e, quando um não quer…
Uma grande conquista não representa nada a não ser para o conquistador. Muitas vezes é a desgraça do conquistado. É tudo pessoal e individual. Todo o peso fica por conta da persistência e resistência das partes interessadas.
Mas, ao invés de persistir, estamos falando de desistir, no sentido mais positivo possível, se é que alguém consegue ver algo de positivo nessas palavras que começam com “des”: despedir, despedaçar, desgastar, desamar, desesperar, desligar… desistir. Mas o fato é que cada uma delas nos liberta de um cenário para buscarmos outro.
Costumamos confundir teimosia com determinação, orgulho com amor próprio, arrogância com autoestima. E quando essa confusão acontece, algo nos impede de desistir e partir para outra direção. Podemos chamar de qualquer coisa, seja ela confortadora ou cruel, mas não podemos chamar de persistência.
Persistir é um ato de bravura, uma demonstração de força, de meta.
Uma qualidade inspiradora! E quem realmente persiste, sabe que tem reais chances de chegar onde aspira, muito embora nada lhe garanta o triunfo. Quem só teima, na verdade cobra da vida um êxito sonhado mas não merecido ou realizável. Para um teimoso, a vida está sempre lhe devendo algo!
E nós, somos teimosos ou persistentes? Valentes ou covardes? Sabemos o que realmente somos?
E se resolvermos desistir de algo? Temos esse direito?
Pensar em desistir, em abrir mão de – e aí a lista é grande – sonhos, metas, pessoas, conquistas, compras, viagens, relacionamentos, é doloroso, até nevrálgico. Mas o que não funciona toma o espaço do que poderia funcionar.
Desistir do erro ganha de persistir no erro; Desistir de um mal trabalho, desistir daquela viagem, daquela paquera, da briga com o vizinho… Creio que esse pode ser o significado daquela frase famosa: “Nada melhor do que perder o bom e achar o ótimo”.
Precisamos dar sinais verdadeiros para a vida, precisamos enfim, persistir sempre no que for genuíno, real, recíproco, positivo, com muita coragem para deixar para trás os fracassos de todas as ordens, as ambições descabidas, os sapatos que nunca iremos usar, as promessas que jamais vamos cumprir, as saudades que não temos intenção de matar.
Saibamos decidir e desistir honradamente, abrindo espaço para outros desejos e conquistas, que, secretamente nos espreitam.
Saibamos nos desfazer dos resíduos, picotando fotos, agendas, cartões de visita, planos frustrados, mensagens não enviadas, trabalhos descartados, horas e esforços aguardando o que não virá! Algo certamente virá ocupar o espaço que ficou.
É quando desistir nos mostra o quanto somos vencedores!

sábado, agosto 15

Quando é preciso dar um gelo

Tínhamos em casa um peixinho azul,  um beta de um olho só – Pedro Caolho- que teve uma vida feliz e tediosa em seu diminuto aquário, até que ficou velhinho e já estava caminhando para as últimas nadadas. Um dia, ligamos para o veterinário com o peixinho agonizando, e ele deu as seguintes instruções: Coloquem-no em um saquinho  plástico, fechem e ponham no freezer. O frio vai anestesiá-lo e ele vai dessa para melhor sem agonia nem dor. E assim foi. O gelo trouxe a libertação do nosso peixinho.
Isso me fez lembrar a expressão: Dar um gelo em alguém, ou colocar na geladeira. Colocar na geladeira é fantástico! Você envolve a criatura que te prejudicou ou magoou, ou qualquer coisa que você não caiu bem no clima polar da indiferença. Você demonstra como um abraço caloroso poderia ser tão mais feliz de que a solidão numa caixa branca gelada, quando a luz se apaga e tudo é inércia e frio.
No caso do nosso peixe,  a geladeira foi um alívio para ele. No nosso caso, a vantagem troca de lado. Somos nós que nos aliviamos guardando a distância do que nos faz mal.
Não é bom ser vingativo, é péssimo. Mas não estamos falando de vingança, e sim de uma chance de defesa para quem não tem pronta resposta, não é bom de briga, não sabe jogar os jogos humanos com a devida frieza (opa, mais gelo). Não é cabível viver em desvantagem, há que se tirar vantagem de alguma outra estratégia.
Nesse contexto e com toda a falta de lógica que nos é particular, eu diria.:
Coloque na geladeira, para que você não estrague: Quem não se importa com você, quem suga sua boa disposição, quem não tem tempo para estar com você, quem te machuca ,  quem compete o tempo todo com você, quem não reconhece você como você…
Uma vez na geladeira, feche a porta e não ouse abrir com a desculpa de que está com fome. Fome de aquecer o que te tira o sono? Beliscar o que te esvazia a alma?  Segure as pontas e não abra essa porta. Deixe um tempo na geladeira todas as pessoas e os sentimentos que atrapalham o  seu caminho. Deixe que o frio entorpeça as mentiras, que o gelo desmaie os abusos. E, quando abrir a porta branca novamente, aqueça só o que estiver bom, saudável e nutritivo para a sua vida. Se algo estragou ou morreu, descarte dignamente,  sem apego, sem culpa. Não foi seu gelo que matou a relação , foi a falta de calor que nunca foi suficiente para mantê-la viva.

Publicado em Conti Outra em 16/08/2015

terça-feira, agosto 11

Volte quatro casas!

E quando tudo estava se ajeitando, aconteceram coisas inexplicáveis que levaram embora as melhores esperanças…
Quando tudo se despedaçou, a vida apresentou novas oportunidades, novos rostos,  rotinas,  hábitos e alegrias…
Quem realmente nunca viveu momentos de euforia, viu seu mundo cair, fez um sucesso inesperado, virou a vida de cabeça para baixo, deixou o dinheiro acabar,  a TV quebrar, o carro enguiçar, a relação esfriar, tudo ao mesmo tempo , indo direto para ou céu, ou caído sem vida no chão?
Acontece sim com todo mundo, várias vezes na vida, e, a cada vez ficamos igualmente perplexos, tentando explicar a coisa toda com teorias tão loucas quanto possíveis, mas o fato é que sempre saímos mais fortes de todo o caos em que estávamos pouco antes. Num segundo distraído, deixamos de fazer parte daquele cenário e já estamos em outro, e aí aparece aquele lampejo da mudança. Alguns dirão: – Finalmente terminou meu inferno astral, ou, ao contrário, – Nessa época tudo de ruim me acontece. Outros não dirão nada, só ficarão gratos, revoltados, inconformados, se achando merecedores.  E tantos outros sentimentos serão válidos, de acordo com a disposição de cada um.  É do jogo, como aceitamos as posições em que estamos no momento.
É preciso aceitar que a vida realmente é tecida por milhões de conjunções possíveis. E, assim como ela, fazemos associações a todo instante, respiramos profunda ou rapidamente, sorrimos ou fechamos a cara. Olhamos para os lados, para trás, para baixo, ou piscamos os olhos e deixamos de ver um lindo sorriso lançado para nós naquele justo instante. Prestamos atenção no que achamos que nos interessa, mas também deixamos passar muitas, muitas outras atenções. É a combinação de escolher e ser escolhido.
O jogo da vida é dinâmico e incontrolável. As peças mudam assim como os humores, as chances, as células do nosso corpo,  o clima, os cabelos, a sorte… E quando passamos por tempos de tormenta significa que algumas combinações não deram certo. E seguimos pois precisamos acreditar nisso para que estejamos com boa disposição para as perfeitas que certamente virão e não durarão o tanto que gostaríamos, como todas as outras vezes.
Tratemos  portanto de soprar os dados e jogar honestamente, buscar e lembrar de tudo o que aprendemos com as derrotas e vitórias anteriores, ficarmos firmes nas péssimas jogadas e vibrar intensamente com as certeiras!
A velha máxima diz: “O que importa é competir”; Mas gosto ainda mais de pensar que existe uma que repete sempre para cada um de nós: Queira vencer, mas antes de tudo, queira estar no jogo, viva o jogo, entenda as mensagens em cada recuada, em cada passada. E volte quatro casas se assim for preciso!

sábado, agosto 8

Para voar, tem que pegar impulso!

Eu não sou uma pessoa de “partida rápida”. Fico esquentando os motores por uma demorada fatia de tempo, o mesmo tempo que passa rápido demais e, de tempos em tempos, me faz lamentar por isso.
Mas, como diria uma querida e íntima vizinha que me visita de tempos em tempos, implacavelmente: – Que diabos, você demora uma vida, e quando dá a partida, não sabe onde quer chegar! Melhor nem ensaiar o voo!
Então, D.Consciência, a vizinha, íntima, jura que me vê como uma garça de olhos vendados, correndo pra lá e pra cá, tentando voar sem pegar impulso, batendo de frente contra muros, tirando fino de carros, cães, postes e gente. Gente! Quanta gente que fala sobre objetivos e metas com uma certeza de fazer inveja- sim, eu sinto essa inveja! ; a gente fica imaginando aquela cadência perfeita, a pessoa realizando tudo no tempo programado, os postes e muros correndo para sair do caminho, as oportunidades fazendo aquele gesto com o dedinho – vem cá, eu tenho um atalho só para você!
Eu imagino isso, confesso, mas imagino porque tenho tempo. O mesmo tempo em que não estou fazendo o que sonhei fazer, o que projetei, plasmei, organizei, mas joguei dentro de alguma caixa de sapatos velha, que mora dentro do armário, na parte mais alta, por baixo da mala que também não sai há muito tempo de lá. E, não usar mala por um bom tempo é mau sinal. Sinal de que não estamos voando, e pior, que o chão pode estar-se abrindo e mostrando o que há embaixo. E esse embaixo revela o que não enfrentamos, o que varremos para longe, o que poda nossos anseios e encharca nossas asas…
Mas, voltando ao assunto, agora vou escrever. O tempo certamente vai jogar do meu lado, vai me ensinar como pegar impulso para voar e colocar nas linhas e entrelinhas tudo o que eu conseguir ver, sentir, guardar e lembrar, pois que a idade vem chegando e a vizinha, ela a Dona…Consciência (nunca tranquila), me fala que o que gente deixou guardado, depois funciona com uma certa dificuldade. Vou fazer um acordo com a vizinha: ela me libera do sermões e eu a deixo satisfeita, cumprindo pelo menos uma meta diária. Dessa forma ambas dormiremos bem. Esse é o grande plano e há de funcionar! Temos um acordo e não trapacearemos.
Agora, para começar a me (d)escrever, preciso de um lápis, um lápis para colocar o primeiro pontinho, o de partida, ponto inicial. Superstição ou não, é isso que eu vou fazer, assim que encontrar o lápis, que, ainda bem, não está naquela caixa de sapatos, caixa essa que irá para o lixo junto com os freios e arreios que guardei com apego por um tempo mais que longo, mais que uma vida suporta.
Aproveitando o momento, vou botar a mala no sol pra sair o cheiro de guardado. Já que o impulso é o caminho, que o voo seja surpreendente!

Sobre deixar ir embora o que precisa ir

Enquanto aguardo a lavadora terminar o ciclo básico – lavar roupas a noite nos deixa com uma sensação insuportável de vigília – penso nos ciclos que não terminam, que se multiplicam, transformam, perduram… Penso nas decisões tomadas que não duram nem o tempo de um café esfriar, nas promessas que não resistem nem às pré-lavagens das ideias,  nos “nunca mais” que deixam de existir por qualquer apelo, na eterna resistência em fechar os ciclos da vida.
Podemos nos comparar com as roupas colocadas em lavadoras? Será que elas, as roupas, se debatem tão sofridamente quanto nós para enfrentar as passagens de ciclos?
Enquanto estamos na fase do molho, a mais quentinha e confortável, os sentimentos ainda estão se acomodando e penetrando nas nossas vidas, ainda sem intenção definida, somente rodando e misturando-se ao todo. É quando nada nos faz mal e toda novidade parece bem intencionada e há de nos oferecer emoções novas e felizes, como assim achamos que será para todo o sempre. Passada a mágica, vem a lavagem, a dura tarefa de perceber as impurezas e falhas do que antes recebemos de tão bom grado. E esse é um ciclo que pode parecer interminável, muito embora seja tão rápido quanto aceitamos. As emoções resistem, encontramos argumentos e desculpas para reter as manchas, nos apegamos fortemente aos cheiros que nos levam aqueles instantes que queremos a todo custo reter e não deixar que escoem; nos agarramos a cada sujeirinha com se fosse a nossa única forma de nos reconhecer – como nas relações que fracassam e imploramos que haja uma explicação que seja, por mais absurda, que justifique toda a camada de ressentimento que ali se instalou, e, desapareça numa piscada de olhos, porque encontramos a resposta… ou criamos, ou inventamos..  E, a cada sacolejada, mais confusão e falta de rumo.
Sorte de quem tem amigos que são pérolas de amaciante aliviando o rebuliço da vida. Amigos geralmente tentam nos mostrar o que está mais do que evidente, mas são tão generosos que entendem quando ainda não estamos preparados para mexer naquela mancha gigantesca e preferimos ficar cutucando um pinguinho de ferrugem que nunca nos fez mal e provavelmente jamais fará. Amigos sabem que o importante é estar por perto quando resolvermos encerrar o ciclo, aceitarmos a ferrugem, e partirmos para a guerra contra a grande mancha!
E, finalmente, um dia a gente realiza que é momento de mudança, que do jeito que está não dá para ficar. Então ensaiamos o fechamento do ciclo, fazemos promessas e metas, e, começamos a deixar descer pelo ralo toda a água que não serve mais para nutrir qualquer coisa que viva em nós. Deixamos ir para longe a água suja, as lágrimas, os fiapos, os suores.  Às vezes a gente se arrepende e corre para tampar o ralo. Mas já é tarde e então é preciso aceitar, deixar ir, fechar o ciclo e começar tudo novamente, de alma limpa, a cada lavagem mais batida, mas pronta para uma nova jornada.  Ai de nós se não fossem os ciclos… Talvez estivéssemos ainda rodando e nos afogando nas mesmas águas.

Você tem um regador para a sua vida?

Se você fosse uma planta, qual seria? Uma orquídea? Uma espada de São Jorge? Em tudo somos capazes de ver a nossa vida.  Quem de nós pensaria em ser uma plantinha miserável? Que importância nos damos e, ao mesmo tempo nos tiramos? Em tudo está a nossa vida, nosso reflexo, a nudez embaraçosa da alma.
Desde que tenho gatos, reduzi  a porção de natureza doméstica a dois vasinhos azuis que ficam no lado externo  da janela da área, totalmente inacessíveis à curiosidade felina. E completamente isolados, como que exilados.  Vez por outra passo os olhos por eles, e, agradeço imensamente à chuva por cuidar de provê-los com um pouco de água,  pois há tempos essa tarefa não aparece na minha lista diária de afazeres. Para ser sincera, até evito.  E olhe que sempre cumpro a lista de tarefas, não deixando uma sequer a realizar. Já a lista de vontades… Acho que inconscientemente coloquei a rega dos pobres vasinhos na lista de vontades.
Bem, apesar de não dar muita bola, tenho um carinho especial por esses dois sobreviventes – isso me faz pensar que fazemos do mesmo jeito com pessoas que gostamos mas não as colocamos num plano essencial na nossa vida. Vê-las de longe (ou sequer isso) já o suficiente para crer que tudo está bem.
Os moradores dos vasos são: No primeiro, uma planta da felicidade – nunca soube se o macho ou a fêmea, e um mini cactus comprado num micro vasinho em um supermercado. Ambos chegaram junto conosco, na época da mudança, e eu sempre gostei de associar o crescimento de um ou outro às fases da vida que estava passando. Obviamente torcia apaixonadamente pela planta da felicidade, tanto porque o cactus me remete sempre às duras decisões e lutas da vida. O fato é que o danado é muito maior do que a felicidade, que sobrevive, mas sempre com um toque de fragilidade, do tipo: – vou secar a qualquer minuto, ou – se eu morrer a culpa é sua, pois não me deu nutrientes. E nisso também acho que passa a nossa vida… No segundo vaso azul mora uma flor de maio, que chegou bem depois e era enorme, mas parecia estéril. Só depois de perder muito da sua beleza e imponência foi que veio a me presentear com algumas flores cor-de-rosa. Hoje,  com somente dois segmentos do que foi aquela planta toda no passado, ela me brinda em julho (não em maio, ela conquistou essa liberdade) com duas flores, em meio aos trevos que nasceram espontaneamente e tomaram o vaso por assalto. Trevos esses que nunca me atrevo a olhar demoradamente, porque se encontro um de quatro folhas,  creio que vou exigir da vida toda a sorte que ainda não tive, ou, se tive, não consegui perceber, pois estava ocupada demais olhando o jardim da vizinha, que, obviamente,  sempre pareceu muito mais interessante. Hoje, novamente as flores de maio-julho me colocaram de volta nos eixos. Meu jardim é lindo, assim como a vida que cultivo.  Mas pode melhorar! Hoje saio para comprar um regador!
(sim, tenho fotos dos vasinhos e das flores que apareceram hoje – registrar é preciso, mas elas são ansiosas e não se demoram em cena, logo se vão, assim como alguns planos e sonhos).

Homologação

- Se a senhora estiver de acordo com os cálculos apresentados, basta assinar nas quatro vias e também neste formulário e neste e neste. Caso discorde de qualquer coisa, a assessoria jurídica do sindicato está à sua disposição para garantir os seus direitos.
- Não é necessário, eu acho que está tudo correto. Nem mesmo tinha idéia de que receberia esta quantia de indenização.
- Não se trata de indenização, senhora. Todos os ítens listados fazem parte de um conjunto de direitos conquistados com muita luta pelas classes trabalhadoras. Cá entre nós, patrão só pensa em explorar, tirar o sangue.
Nesse momento ela lembrou do seu ex-chefe, na verdade de todos os seus ex-chefes. Ela sempre guardou consigo um senso ético ímpar. Nunca falou mal de qualquer um deles, ao contrário, exaltava exaustivamente (pelo menos para quem ouvia) as qualidades de cada um, com o orgulho que só uma mãe sente. Sim, ela se sentia um pouco mãe. É certo que ela acreditava que nenhum deles sobreviveria sem ela, mas quem não acreditaria se fosse uma Mary Poppins de tailleur, colar de pérolas e crachá? Ela tinha exata noção de sua importância na vida de cada homem de quem ela cuidou, no sentido profissional, é claro.
Mas a verdade é que ela realmente não acreditava que era explorada. Ela fazia suas tarefas intermináveis por prazer, por uma louca satisfação de trabalhar como secretária executiva, e das melhores! 
Soou mal o que o representante do sindicato comentou, mas ela não encontrou motivação para discordar. Soltou aquele meio sorrisinho de canto, mais para: você é um idiota - do que para: sim, tem razão.
E ainda havia uma dúvida maior do que a sua indignação pelas palavras do Sr. Sindicato: Por que ela receberia uma indenização por ter sido tão feliz trabalhando na companhia, sob a mais profunda pressão, nível máximo de estresse, jornada média diária de 14 horas, pressão 16 x 10, dores constantes na cervical, além de administrar a insuportável política da boa vizinhança com as outras secretárias do andar? Na sua opinião, talvez ela tivesse que indenizar a todos, guardadas as proporções - as secretárias "colegas" levariam a menor parcela - por toda a experiência incrível e única que ela viveu por todos esses anos.
Enfim, a caneta caiu, ela abriu os olhos e se deu conta dos pensamentos insanos que estavam tomando forma. Pegou seu cheque administrativo, agradeceu, soltou a outra metade do sorriso e saiu. 
Agora estava homologado. Ela era uma mulher aposentada, com uma grana boa na mão, seu crachá na bolsa e nem um plano daqueles que fizera anos atrás lhe interessava no momento.
- O que você vai fazer, Catarina Aguilar? Secretaria Executiva aposentada, mulher encantadora, contadora de estórias, fazedora de  história, pessoa intrigante, curiosa, criativa, pro ativa, imperativa... Para onde vai todo esse talento e vontade? Acaso saberia fazer crochê ou tapeçaria? 
Ela não tinha a menor idéia, mas sabia que algo já estava vindo ao seu encontro. Uma buzina forte e estridente tocava insistentemente nos seus ouvidos.

Sobre apegos...posso ficar com o crachá?

É o último dia de trabalho dela na empresa e ainda não é possível definir qual o sentimento dominante em seu coração. Por um lado ela está super animada com a aposentadoria próxima, pois afinal ainda é jovem, fez um monte de planos de vida, de viagens, de loucuras e maravilhas, planos que só se consegue fazer confinada em um escritório por anos a fio, sem hora para comer nem para sair, muito menos para fazer uma ligação para a melhor amiga para validar seus sonhos concebidos entre a preparação de um evento para "ontem" e uma interminável prestação de contas de viagem que o chefe fez há seis meses e todos os recibos e tickets já estão perdendo a tinta de impressão.
Neste momento, uma nuvem descomunal de incertezas e nostalgia cobre o ambiente, cobre a mesa de trabalho, os bibelôs e mimos que ela colecionou e defendeu como relíquias sagradas por todos os longos anos.
- Como assim tudo vai mudar amanhã? Ela fez planos, mas o tempo trapaceou e passou rápido demais. E agora, companheira chave da gaveta, esse é o momento em que vocês se separam. Você segue com sua tarefa, guardando os pertences da futura ocupante desta mesa, e ela vai viver nova vida, buscando outra rotina em que caiba e também caiba nela e novas importâncias para trancar em outra gaveta. 
É chegada a hora das despedidas e todos distribuem aquele abraço saudoso, apertado, melancólico, quase um luto. Muitas promessas de: Vamos te chamar para a festa do final do ano - festa essa que ela organizou por muitos anos, e, diga-se de passagem, ninguém jamais organizará como ela. Falsa modéstia não! Ela sempre se sentiu muito confortável com reconhecimento...e com bônus, ah os bônus.
Enfim, todos do andar fazem o ritual de despedida, inclusive o chefe. Ela está levando presentes, cartõezinhos, alguns dos mimos da mesa, um pouco de saudade, muito medo do futuro e... o seu crachá. Não é hábito que deixem ex-funcionários levarem o crachá, mas ela pediu com um olhar tão irresistível, que afinal conseguiu seu cobiçado troféu. Ela é honesta, correta, mas sabe em seu íntimo que, se não tivessem permitido, ela o teria levado assim mesmo. Há coisas na vida difíceis de abrir mão. 
Cada um sabe o que ilustra e preenche a sua vida. E ela ainda tem o seu crachá. E todos os dias ela o carrega em sua bolsa, seu amuletinho da sorte. Alguém para condenar?