quarta-feira, agosto 31

Morte, eu te absolvo

A primeira reação é sempre desconcertante, aguda, sem resposta na linguagem humana.
A morte chega e leva alguém nosso. Não do outro, mas nosso.
Por vezes ela avisa, em outras, sugere, na grande maioria, surpreende.
E encontrar uma lógica no meio de lágrimas e lembranças é de uma missão dolorosa.
Mas há lógica, há razão, há sequência, é consequência. As religiões consolam, a medicina explica, a idade muitas vezes justifica, o sofrimento anterior assina e carimba.
A morte de alguém que a gente ama é exatamente a dimensão do vazio que ela deixa.
A gente chora a nossa orfandade mais do que a partida do nosso amor.
A gente culpa a morte por esse sentimento tão incômodo, avassalador e conclusivo. Ela dita o ponto final enquanto a gente ainda está se enroscando nas reticências e exclamações.
Esta semana eu me deparei com a morte. Ela se apresentou súbita, apressada,decidida. Cumpriu sua tarefa num instante e se foi.
Num primeiro instante, a impressão foi de que ela bagunçou tudo e não ficou para ajudar a arrumar. Mas, com as emoções mais tranquilizadas, tudo ficou mais claro e, dessa forma, foi possível entender a delicadeza da partida, a sensação de missão cumprida, de tempo esgotado na esfera da vida que nós conhecemos.
Diferentemente das mortes violentas ou precoces, quando não há argumentos para justificar, a morte que chega em missão de finalizar realmente uma jornada, esta morte é quase generosa. Ela não alardeia nem confessa, mas traz alívio e descanso.
A morte há muito assume uma culpa que não lhe pertence. Ela unicamente cumpre o que lhe é imposto. E o tempo, sorrateiramente passa impune, sem chamar para si a atenção e responsabilidade. O tempo é o mandante, a morte é o executor.
E como são felizes os que podem se despedir com o imenso sentimento de que nada faltou à vida que se despede. Que o amor sempre prevaleceu e ficará eterno na forma de saudades.
Morte, eu não te culpo por me tornar mais órfã. Desta causa, eu te absolvo.

Publicado em Conti Outra em 31/08/2016.

terça-feira, agosto 30

Consciência leve e pouca bagagem. Vida, agora é para valer!

Charlie Chaplin um dia disse que a vida não permite ensaios. A minha, entretanto, teve incontáveis e ainda não posso garantir que eles já tenham acabado. Foram ensaios sérios e compenetrados, ensaios debochados, insolentes ou até desorientados. Não discordo de Chaplin. Justamente admiro sua determinação, mas não a carrego comigo como condição essencial.
Permiti-me cair no erro repetidas vezes, e, ainda depois de consciente, errar mais uma vez, ou mais.
Confundi irresponsabilidade com autonomia, desleixo com desânimo, procrastinação com sossego. Manipulei os argumentos, me especializei em desculpas, deixei o tempo deitar e rolar enquanto ensaiava uns passinhos vacilantes.
Mirei no objetivo de ter: ter conforto, ter segurança, ter a mais, ter demais. E quem disse que é possível se sentir confortável, ainda que o sofá seja um escândalo de gostoso, quando a alma está inquieta, dura, alerta! Foi munição demais para pouca batalha.
E a busca continuou, entre uma comprinha para aplacar a sede eterna e um dia inteiro na roda do hamster, sem produção, sem direção, sem satisfação.
Não é demais dizer que o cansaço de quem não sabe para onde está indo é infinito. Mesmo que a estrada vire logo ali, vagar na vida é estafa certa.
Então, depois de muitos arranhões e cabelos presos nas farpas das cercas que eu mesma construí, chegou a hora de botar tudo abaixo e conferir o que é a vida além das minhas próprias certezas.
Sem transformações aparentes, no entanto, com gigantescas mudanças internas, deixo presas na cerca apenas as culpas que já purguei, os balangandãs que não me enfeitam mais, todo adeus e boa sorte que já disse e também já ouvi, e, por fim, a ganância de ter de sobra, de reserva, de segurança para o dia em que o mundo for acabar.
Agora o caminho é o do papo reto, consciência leve e pouca bagagem!
E vida, aí vou eu!

domingo, agosto 21

Para quem você se esforça?

Já parou para pensar na quantidade de atitudes e decisões que você toma para mostrar, provar, convencer, surpreender outra pessoa? E que esse esforço parece não ter fim porque a outra pessoa da vez, da ocasião, do momento sempre vai achar que você poderia ter feito um pouco mais?
Em contrapartida, já se viu numa situação de aceitar o mínimo para não ficar sem nada? De negociar as rebarbas porque o miolo já estava comprometido, e não era com você?
Essa inversão não é rara, nem inteligente, nem muito menos justa, mas acontece, e como acontece! A gente espera uma reciprocidade não tratada, não combinada.
Quem se vale do esforço alheio, não tem intenção de dar nada em troca. É um caminhão de esforço para um baldinho de retorno.
A pergunta que grita é: Para quem eu me esforço? Estou me colocando em primeiro lugar nas ideias e ações que planejo executar? Não é por vaidade, longe disso, é por estima. Auto estima, sobrevivência!
Eu não posso ter uma performance profissional excelente para agradar a um superior. Isso é mera consequência. Eu não devo orientar minha aparência para convencer o mundo. Isso é escravidão. Eu não quero colocar meus desejos e sonhos nas mãos, no tempo nem na vontade de ninguém. Isso é suicídio em vida.
Tudo na vida requer esforço. É fundamental saber para quem você se esforça. Esforço para a família, para levar um pouco de felicidade a alguém, para prover, para dividir, para criar. Tudo isso é esforço compartilhado, saudável, vivo!
Esforço para prender, convencer, provar, burlar, iludir, esse é o esforço doente, aquele que despende demais e retorna sem nada. Não vale o esforço, não se sustenta, não alimenta, não sobrevive.
Como se fala por aí, tem coisas e pessoas que não valem o esforço. Como um doce sem sabor e sem qualidade, não vale a pena engordar por isso!
Esforço bom é aquele que a gente faz para a gente e convida os afetos para a divisão dos frutos. E vice-versa!


Publicado em Conti Outra em 21/08/2016.

sábado, agosto 20

Minha solidão não é sucata

No dicionário a palavra tem um significado interessante: Estado de quem está só.
Mas, na vida, esse substantivo feminino possui uma palheta de tons e cores praticamente infinita.
Solidão de ideias, de crenças, de pares e ímpares. Solidão não identificada, solidão escancarada, solidão velada, observada, invejada, desprezada, amaldiçoada.
Solidão tem mão pesada. Quando faz carinho, é bruto; Quando cutuca, deixa marca; Quando coça, arranha; Quando bate, nocauteia; Quando domina, enlouquece.
A minha solidão é cíclica, intempestiva, volúvel. Nunca consegui identificar se é regida pelas fases da lua, pelas estações do ano, ou pelas variações do meu humor.
Horas me sinto só de dar dó. Outras, nem sei o que é isso. Mas ela é real e universal. Todo mundo se sente só em algum momento!
O estado de solidão é muito mais do que não andar de mãos dadas, não usar uma aliança, morar sozinho, não ter família ou não ser exatamente uma pessoa popular.
Solidão é viver com a incompreensão, morar com o egoísmo, compartilhar sentimentos com egos inchados e exaltados, ter voz e não ser ouvido, questionar, pedir, suplicar e não ser atendido. Solidão é se reconhecer só justamente quando não gostaria. É ter espaço para mais uma presença, embora acompanhado de ausências.
A solidão mais cruel é aquela que pode contar com uma companhia que não enche o coração. Solidão dolorida, acompanhada mas ignorada.
É a solidão sucateada, vendida por uma promessa de companheirismo, uma condição social, uma vida calculada, desejada, ensaiada, mas de longe aproveitada.
Pensando em tudo isso, de vez em quando eu liberto minha solidão para que sofra, doa e chore, para que eu me lembre e valorize minhas boas e caras companhias, procure por elas, peça colo e carinho, ombros e ouvidos generosos. E dessa forma eu consigo negociar novamente com a solidão. Fazemos um trato cumprido com honestidade. Eu a consolo e ela não me domina.
E, se eu der algum passo da vida e isso for decisivo para fazê-la minguar, vou me despedir respeitosamente, prometendo deixá-la voltar algumas vezes, somente para um café com lembranças do tempo em que éramos inseparáveis.
Publicado em Conti Outra em 20/08/2016.

quarta-feira, agosto 17

Felicidade. É preciso lutar contra o despreparo.

É preciso fibra, coragem para romper antigos padrões, valentia para recusar as reações viciadas, agressividade para fazer recuar a covardia.
O que a gente mais quer é ser feliz. E aí pinta uma ocasião, uma promessa, uma conjunção de boas novas e esperanças daquela nova fase sonhada, aguardada, projetada. O que a gente faz? Vacila.
E bate aquela insegurança, aquela olhada para trás do tipo: – É comigo?
E, num piscar de olhos chegam as dúvidas, a impressão de haver algo errado, a lógica totalmente desencaixada angustiando e mostrando o padrão não é esse.
Afinal, nos planos é o que se quer, mas, e no real? Quando a coisa chega, a gente foge, declina. Alguém sabe o por quê?
Não é fácil ser feliz, isso é fato. Requer uma enorme responsabilidade; É preciso assumir uma condição de privilégio; Deixar de lado a culpa, o remorso, o medo, a coisa toda que tenta engasgar esse caminho.
Não era para ser assim, mas não é raro acontecer. Aproveitando o momento olímpico, a gente chega na cara do gol, o goleiro totalmente abatido, e o chute sai para fora, ou, pior, a gente sai fora, numa demonstração clara de despreparo para encarar a felicidade, a alegria que se estende um pouco mais, o momento glorioso, a perfeição do sonho materializado.
E encarar essa incapacidade é de cortar o coração. Porque a gente quer. Mas a gente não sabe como. A gente não consegue se conceder essa felicidade. E se contenta em ser feliz fazendo os outros felizes, o que também é importante, mas a conta não fecha.
É preciso lutar todos os dias, entender e absorver o significado da palavra merecimento, sem exageros obviamente, mas manter o foco com toda a seriedade possível. Ser feliz é um direito. Não somente dos filhos, dos amores, dos amigos, dos heróis desconhecidos.
Ser feliz é para a gente também e precisamos nos preparar para receber os momentos felizes com vontade.
Aprender a ser feliz é conquistar o direito de se lambuzar com esse chocolate que algum dia nos disseram que não era para nós. Mas é, e sem culpa!
Publicado em Conti Outra em 17/08/2016.

segunda-feira, agosto 15

Mando para o inferno? Devolvo na mesma medida? Sento e choro?

Se há uma tarefa terrível, é a de aturar um mal humorado permanente, o que crê que a vida está sempre lhe devendo algo, que está dispensado de utilizar modos e comportamentos educados.
De primeira, a gente pondera, tira algumas conclusões, imagina alguma dureza que a pessoa passou ou está passando, e releva. E aí, toma outra patada, daquelas de ficar rodando até enjoar. O bico do sisudo começa a perder a graça.
O mal humorado é um sujeito que está se lixando para o mundo a sua volta. O mundo dele está desconjuntado e ele não quer nem saber se esbarrou, derrubou ou chutou o direito do outro de ser tratado com cortesia e cordialidade.
Ser contrariado e continuar de boa é um talento difícil de cultivar, mas muito gratificante.
Delícia é ver que o mau humorado é a outra parte. Melhor deixá-lo com seu drink de vinagre e resmungo infeliz.
Ruim, ruim mesmo é quando o mau humor contamina e passa. Aí chega a doer, porque ele vem com tudo, e traz de rodo todas as situações aturadas, toda a paciência dispensada, todos os foras e malcriações escutados. E quando esse bicho pega, ele gruda.
Desfazer um humor enfezado é difícil, é como se limpar de um óleo seboso que não quer desgrudar.
Melhor prevenir, sempre. Convidar a passar, abrir o caminho, estender o tapete, retribuir com um sorrisinho, mesmo que amarelo. Deixar o sujeito fazer o discurso da razão odiosa, xingar, espernear, rebolar, se exaurir. No meio do silêncio feito para o show de amargor, tem até chance de ele perceber o quanto está sendo inconveniente. E isso vai gerar mais mau humor ainda, mas é o processo.
Mas, e essa é a grande esperança, em algum momento ele vai se tocar, vai enxergar, vai ponderar. Se vai mudar, não tenho a menor ideia. Mas, me afogar na piscina de visgo, isso ele não vai!

Publicado em Conti Outra em 14/08/2016.

sexta-feira, agosto 12

Ordem absurda não se cumpre!

Aprendi essa frase há muitos anos e me disseram que era uma frase de quartel. Se é verdade não sei, mas gostei do conceito e trago até hoje como preceito básico.
Uma ordem absurda é geralmente o cumprimento de uma ação precisa ser feita, mas o mandante não o que fazer com as próprias mãos. Pode ser um delito, uma humilhação, armadilha, uma fofoca, uma traição,o que for…
Uma ordem nem sempre vem em forma de ordem; Muitas vezes um pedido manhoso, aquele apelo que sutilmente lembra favores em débito, uma velha e eficiente chantagem emocional.
Aí a gente percebe que tem absurdo, mas pondera no rabo preso, na autoridade de quem pediu, nas consequências da negativa. E sente medo. E acaba cumprindo, ainda que sofrendo. Nessa hora a gente se desintegra, literalmente. Perde a integridade para não perder a relação. Perde a piada para não perder o amigo. A campainha soa forte dentro da consciência: Escolha errada, obrigada, coagida.
E a gente passa do estado de devedor submisso, a rancoroso injustiçado, mas a culpa é nossa, exclusivamente nossa. O esperto pediu, mandou, ordenou. O medroso cumpriu por vontade. Vontade de agradar. Não tem o que cobrar depois. E não virá reconhecimento nem agradecimento, nem muito menos arrependimento. No máximo, mais uma dúzia de absurdos até que a fonte seque, até que se acorde.
A gente tem um medo mortal de decepcionar. A gente fantasia que negar é proibido, principalmente nas relações de afeto. Medo do amor acabar. Mas, e encarar isso é uma dor, amor que não tem maturidade para conviver com contrariedade, é egoísmo disfarçado, é individualismo tentando escravizar o par.
Dito isto, e voltando às ordens absurdas, a melhor a mais segura forma de saber se é bom cumprir, é rapidinho pensar – e sem fantasiar – se quem pediu o faria em reciprocidade, sem vacilar.
Nessa hora despencam as ilusões, e, antes mesmo de catá-las no chão, a resposta já está pronta: – Não, sinto muito. Ou nada.
E reafirmando o velho dito, ordem absurda não se cumpre, nem se vier camuflada de um pedido manhoso.

Publicado em Conti Outra em 11/08/2016.

segunda-feira, agosto 8

Nem todo perfume me inebria, nem todo sorriso me convence

Gosto é uma coisa. Aquela coisa que não se discute, particular, individual, personalizada.
É historia pessoal, a provocação que mais ninguém conhece, aquilo que não se desvenda por adivinhação, nem se interpreta por dedução.
Eu gosto de pêssego, você de abacaxi. E eu gosto de experimentar do que você gosta. Quem sabe eu gosto também. Ruim é colocar a recusa na frente, como um escudo para não alcançar a coleção de gostos tão carinhosamente cuidada.
É o perigo de eu achar que meu gosto vale mais do que o seu. E isso é de extremo mau gosto.
Ter gostos mais ou menos definidos é positivo porque definem um norte para o que se quer e o que se encaixa para a vida. E descobrir novos gostos é sempre um vitória a ser incorporada e comemorada. Nada mais prazeroso do que se descobrir inebriado ou encantado por algo novo e agradável aos sentidos, sejam eles quais forem.
Conhecer os próprios gostos ajuda a descobrir o que não é de gosto. Ajuda a evitar o que causa desgosto, na maioria das vezes.
Aprender que o gosto alheio é tão importante quanto o seu próprio, ainda que aos seus olhos, estranho, extravagante, curioso, simplório, ou sem definição suficiente.
Com o tempo a gente aprende que as diferenças são peças essenciais no quebra cabeças do crescimento.
E, se por gosto ou somente por ignorância, eu vier a desprezar o seu gosto, por favor, me perdoe o mau gosto. Definir os limites de defesa do meu gosto sem esbarrar nem atropelar o seu, é uma luta diária e árdua que ainda enfrento pela vida afora.
Nem todo perfume me inebria e nem todo sorriso me convence, mas ainda estou longe de ter um vasto leque de gostos. Estou, assim como você, em contínuo crescimento.

Publicado em Conti Outra em 08/08/2016.

domingo, agosto 7

Se eu não tivesse optado por calar, teria dito coisas horríveis

… e teria me arrependido depois, não por você obviamente, mas por mim, que não mereço carregar palavras duras, pesadas, odiosas como minhas.
Fiz o certo, fiquei de boca fechada e não entrou mosca. Também não saiu nenhuma ofensa, nenhum xingamento, nem uma única insinuação. E, acredite, eu tinha uma trança de coisas para dizer, mas nenhuma delas faria a menor diferença no desfecho da história, porque era um enredo fraco, com personagens sem sintonia e faltou talento para esquentar a cena.
Dizer o que me desapontou não te fará mudar um milímetro do que é e tem certeza de ser. E o que me desapontou é problema meu.
Justificar porque desapontei é desnecessário, já que isso é problema seu e você preferiu não tocar nesse terreno.
Como é difícil calar quando tudo o que se quer é falar, esbravejar, discutir e desarrumar o tabuleiro. Como é difícil não chamar a atenção para si, para sua decepção, para que assimilem suas razões, sintam compaixão de suas decepções, tomem partido, levantem bandeiras, não deixem a briga esfriar.
Porém, passada a fase aguda, que alívio, que enorme prazer! Que gostosa a certeza de que eu conheço as minhas certezas e não é preciso gritar na janela, jogar no ventilador, escrever uma longa e dolorosa mensagem, desabafar, se esparramar em argumentos.
Se eu não tivesse optado por calar, teria dito coisas horríveis e estaria agora arrastando as correntes da vergonha, do arrependimento, do ridículo que teria passado e feito passar.
Creio que nada que não fosse merecido ouvir, mas não por mim. Recuso esta tarefa.
De todas as conclusões, e também depois de comemorar a sábia decisão, fico com a serena conclusão de que não falei o que sentia por opção. Você, que seria o alvo da missão abortada, muito antes preferiu calar, por não ter realmente nada a me dizer.
Publicado em Conti Outra em 07/08/2016.

quarta-feira, agosto 3

Traumas, apenas me ensinem. Nada mais.

Sim, já sofri traumas, mas eles também sofreram comigo, já que não me deixei acorrentar e fiz de tudo para afastá-los da minha vida.
Traumas são murros. Nunca chegam sutilmente, nem se motivam facilmente a deixar o cenário. Traumas são roxos, fúnebres, com olheiras profundas e se alimentam da vida alheia.
São bichos chifrudos, que ao menor toque já machucam, rasgam, provocam feridas profundas. Os traumas são uma total e verdadeira maldade. Dardos afiados.
Não sei dizer ao certo se há cura para todos, mas afirmo categoricamente que a luta nunca é inútil. Já saí no tapa com muito trauma, já levei rasteiras, socos no estômago, fui esganada, mas também já eliminei muitos deles, total e definitivamente da minha vida.
A briga é feia, mas a razão é justa. Sobrevivência. Ninguém deveria se submeter às consequências de um trauma, quase sempre plantado à sua revelia, provocado por quem acha que as coisas da vida não voltam, por irresponsabilidade, crueldade, ignorância ou somente pelo acaso.
O acaso, aquela hora errada, lugar errado, companhias erradas. O acaso é um coitado, culpado de um oceano de traumas. – Melhor ter algo para culpar…
Esta semana fomos assaltados. Ou melhor, minha filha foi abordada, a mão armada. Tive que assistir, estática, parada, respirando o mínimo, para não piorar a situação. Meu maior tesouro em perigo.
Nada sofremos, só foi embora o que não é essencial para a nossa vida, mas, e não é pensamento para ignorar, um acaso, uma estatística, um azar a mais na cidade onde vivemos, poderia se tornar um trauma.
Mas, para minha imensa sorte e constatação, a filha que ainda penso ser frágil e desprotegida, tem a mesma relação com os traumas que eu costumo ter, ou seja, uma vida onde eles não são bem-vindos, onde a saúde mental e a crença nas boas realizações superam qualquer trauma, derrotam qualquer pessimismo, e mandam para o inferno as sensações infernais que costumamos sentir, quando dominados por traumas e pânicos indesejados.
Publicado em Conti Outra em 03/08/2016.