quarta-feira, setembro 23

Humilhação é arma de tolos!

Situações humilhantes nos acontecem e não dependem de nós. A maioria das vezes sequer somos parte presente na coisa toda. O outro faz de um jeito que nos coloca na sinuca, sem defesa, já sem rota de fuga. Que chance teríamos de reação quando o circo já está armado e o vexame é iminente? Fato é que, perante o mundo que assiste, ficamos em posição de desvantagem, de vergonha, humilhação.
Um grito, uma ordem áspera, uma mentira, uma situação pública, uma trapaça, uma traição. E lá estamos nós, tremendamente humilhados, rebaixados à condição forçada de enganados, ultrajados, desamparados.
Mas, pensemos por um segundo. Quem é o humilhado nesse cenário, cara pálida?
Você que estava levando a vida na maior e melhor boa-fé?
Certa vez, escutei de uma pessoa uma frase genial: – Fulano, se tivesse caráter, seria um mau-caráter.
Sempre haverá quem passa a perna e quem é ludibriado. E sempre haverá quem pensa estar em vantagem,  e quem acredita ter perdido o chão, as esperanças, a vontade de sorrir, o caminho de casa…
Quando se leva uma bela rasteira, dói a queda. Mas, embora com dores, roxos e arranhões, levantar é uma certeza e,  para qualquer um de nós, pode ser o despertar, a tomada de consciência de que a dança já estava fora do ritmo, que o par já era ímpar, que pouco ou nada conhecemos do outro.
A queda, afinal, doeu, confundiu, revoltou, mas também  mostrou a realidade, descortinou as dúvidas e tirou o peso de uma ansiedade que não sabia de onde vinha e como crescia tanto. Porque afinal sabemos – e sempre sabemos –  quando algo está para acontecer. Sabemos com quem nos metemos e pagamos para ver. Somos bravos! Somos corajosos! E a vida é para isso mesmo. Encontramos pela vida quem perfuma os nossos caminhos, mas também que joga lixo, lama e outros descartes.
E, apesar do risco, nunca será humilhante se entregar,  tentar mais um pouco, buscar entendimento. Humilhante é a covardia; humilhante é ter a mentira como aliada, o sorriso e a lábia como cúmplices. Humilhado é quem poderia usar de integridade e  sinceridade e mesmo assim não o faz, e que finalmente mostra no que consiste o seu caráter, geralmente, com um fechamento épico.
Costumamos adorar os bandidos, isso é inegável, mas lembremos sempre que um bandido só é charmoso e adorável quando não somos nós as suas próprias vítimas. Sejamos, portanto, mais solidários, pois  não sendo os bandidos, seremos, em algum momento, as vítimas.
Podemos até, por distração ou desânimo, adormecer humilhados, mas, que não dure mais do que mereça, que se esvaneça. Amanheçamos curados, superados e integralmente libertos.

Publicado em Conti Outra em 18/09/2015

segunda-feira, setembro 21

Doenças modernas: o carisma invertido

Temos diariamente quinhentos mil motivos para reclamar: a conta da luz está caríssima, o vizinho da frente fala aos berros com o filho, o elevador quebrou de novo, o dinheiro ainda não entrou na conta, o mercado está um roubo, o 3G não está funcionando!!! Sim, temos motivos de sobra.
E temos, igualmente, uma quantidade variada de pessoas que passam por nós, que vêm até nós, que convivem diariamente conosco, que nos observam, certas delas até desejariam nos conhecer um pouco mais, compartilhar momentos conosco, enfim, é gente o bastante para espantar qualquer solidão, mas… sequer prestamos atenção.
E perdemos muito, deixamos passar muito, desperdiçamos muito.
E por quê? Por que, sem perceber, nessas horas estamos no modo – carisma invertido -, esbravejando, lamentando, olhando para o vazio, para céu, para o chão, para a carteira, para a TV, para o celular, menos para os olhos uns dos outros.
Carisma invertido é uma espécie de acessório que vamos agregando ao longo da vida, especialmente, em alguma épocas mais azedas.
Temos a opção de exalar sorrisos, bom humor, piadas, elogios, abraços, mas, preferimos vociferar discursos intermináveis contra a política atual.
Temos a chance de conquistar mais algumas amizades numa reuniãozinha social, mas, escolhemos fazer o tipo antipático que só fala com quem já conhece e, em último grau, que faz uma cena teatral contando suas vantagens, monologando com seu copo e entediando a todos.
Podemos sair de casa e cumprimentar todas aquelas pessoas que diariamente passam por nós. O zelador, a moça que passeia com três cachorros, o jornaleiro, o vigilante do banco, a mal-humorada da padaria… mas, o que fazemos? Abaixamos a cabeça, fingimos que estamos pegando algo na bolsa, falando no telefone.
Dessa forma, vamos nos transformando pouco a pouco num grupo cada vez maior de pessoas de carisma invertido. A pessoa interessante que mora em nós vai perdendo espaço para o posseiro rabugento, o matador de risadas, o que já sabe tudo e não está a fim de trocar nem aprender com ninguém.
Fica, portanto, uma seleção de dicas para quem quer manter o seu carisma no estado natural, sem inversões ou mutilações:
  • Não seja mal-educado sob nenhuma desculpa;
  • Não use as crises, quais forem, como escudo para sua falta de assunto;
  • Não fale mal do que não sabe. Não agrida antes para perguntar depois;
  • Não use meias palavras quando uma pergunta exigir resposta inteira;
  • Não retribua um sorriso com indiferença;
  • Não categorize pessoas;
  • Não faça tipo, não seja um tipo, não imite um tipo;
  • Não pense que a paciência alheia é ilimitada;
E, por fim, esforce-se todos os dias para ser aquele tipo de pessoa que você admiraria pelo carisma!

sábado, setembro 19

Pisque uma vez se entendeu, duas vezes se quer se compreendido

Ontem eu fui assistir a um show de um artista que gosto muito, daqueles que você realmente não hesita em sair de casa numa noite fria e chuvosa, porque o prazer de ouvi-lo é uma certeza.
Enquanto ele cantava e tocava lindamente o seu violão – e só ele e o violão bastam para encher um local de alegria e melodias – eu me percebi dando longas e demoradas piscadas. Piscadas sem pressa nem pressão, sorridentes, felizes. E, nessa hora, entendi como algumas expressões corporais são tão sutis e tão significativas ao mesmo tempo. Ninguém reparou, somente eu, e confesso, depois de algumas boas repetições. E, quando me dei conta, entendi o prazer de concordar com a minha alegria piscando os olhos, como se eles suspirassem.
Penso que fazemos isso um milhão de vezes na vida, mas não nos damos conta. É tão importante quando dizer para o outro que você entendeu a mensagem dele, é notar que isso é reafirmado por um gesto mínimo, mas delicioso. Melhor do que falar sem parar, repetir até a exaustão, retomar um assunto findo, é demonstrar com o brilho do olhar o que as palavras nem são capazes de expressar. Uma piscada lava os olhos e eles abrem mais brilhantes do que antes.
Mas, e quando o assunto é ser entendido? E quando chegamos naquele dilema de querermos muito ser compreendidos, mas o outro lado insiste em nos dizer “Não te entendo, não te compreendo, não consigo interpretar o que vem de você.”
Demoraria tempo demais inventar um novo vocabulário com palavras próprias para as nossas comunicações particulares, para as questões específicas de um diálogo.
Penso que, nessas encruzilhadas linguísticas, a solução é: Olhar nos olhos e piscar, não uma, mas duas vezes. A primeira para constatar que existe uma real atenção, e a segunda, para uma reflexão humilde, sem exasperação, sem aborrecimento. A segunda piscada mais longa, dá tempo para uma reflexão sobre como estamos nos comunicando e que estamos realmente querendo. E se acompanhada de uma respiração profunda, evita terríveis mal entendidos e azedumes. Nesse ínfimo tempo, ambos pensam e analisam se a conversa segue ou finaliza. E, por fim, após a segunda piscada, certamente virá uma inspiração para desatravancar a conversa, sem gritos, sem “esquece”, sem deixa para lá”.
Para mim, a partir de agora, serão regras:
Pisque uma vez para mostrar que entendeu, que aceitou, que bem recebeu.
Pisque duas vezes para ser entendido, para fazer a parada técnica que os diálogos às vezes pedem, para melhorar os argumentos.
E se as dicas derem certo, dê aquela piscadinha de um olho só para confirmar.

terça-feira, setembro 15

Amigo de verdade é melhor do que bolo de chocolate

Amigo de verdade é para toda hora, de qualquer jeito, para sempre um pouco mais. É mesmo, não coloquemos dúvida onde não existe espaço.
Amigo de verdade vira comadre e compadre, vira tia e tio dos nossos filhos, hospeda nosso cachorro quando a gente viaja,  bebe até fazer vexame na nossa casa, na frente dos vizinhos, faz declaração de amor pra gente na rua, pega o que quiser na geladeira e se mete na nossa vida como quiser. Oi? Também isso?
Então esse é um daqueles momentos em que a gente analisa o que é esse tal legado de um amigo de verdade.
Pode um amigo de verdade pedir que você sofra uma dor que é dele? Pode, porque embora o pedido geralmente seja mal feito, o que ele quer é que você o ampare, esteja por perto, e porque com pedidos ou não, não importa em que grau nem por quanto tempo, você já estará fazendo isso, junto com ele.
Pode um amigo de verdade ser tão diferente de você a ponto de discutirem acaloradamente sobre opiniões políticas, gosto musical, time de futebol, questões polêmicas e amenidades? Pode, porque é exatamente desse jeito que se cresce e se ajuda a crescer. Todos juntos partilhando das mesmas certezas, além de ser chato, não é produtivo nem emocionante. E emocionante é ver um amigo bravo com você no dia em que você deixou de ir ao futebol com ele para assistir um filme que ele odeia e, no dia seguinte, surpreendê-lo com pão quentinho na hora do café da manhã. Claro que para aborrecê-lo durante o café, você pode contar o filme inteiro. E pedir para seu amigo te escutar também pode.
Pode um amigo entrar de uma forma tão intensa na sua vida, dar conselhos, ser mediador nas questões que você não consegue resolver, chamar a atenção dos seus filhos quando os vir fazendo algo reprovável, criticar seu cabelo, sua falta de vaidade, mandar você voltar para o quarto e vestir uma roupa decente para saírem juntos? Pode sim, pode e deve. Pode desde o momento em que foi por nós denominado um amigo de verdade. Precisamos aprender a ouvir críticas, a receber suporte quando não estamos dando conta, precisamos deixar que os amigos sejam realmente aquela família escolhida que tanto alardeamos nas redes sociais, precisamos e temos o dever de não fazer restrições aos nossos amigos de verdade. Eles são muitas vezes as primeiras pessoas em que pensamos quando acordamos, não por seus rostinhos lindos, mas pela importância que conquistaram nas nossas vidas.
E enfim, que coisas não devemos pedir aos nossos amigos? Nunca devemos pedir que se afastem por qualquer motivo, nem que nos deixem sozinhos para pensar, nem mesmo que não se importem conosco porque “já vai passar”. Não devemos jamais usar qualquer desculpa com um amigo de verdade. Se há uma coisa garantida em se tratando de uma verdadeira amizade , é que a verdade anda de mãozinhas dadas com a intensidade do sentimento de ambos.
Obrigada a todos os meus amigos.

segunda-feira, setembro 14

Desintoxicar o coração, desenvenenar a alma

A vida campestre sempre soa mais saudável, calma e relaxante do que a vida numa grande e barulhenta cidade. A paisagem bucólica leva a gente para um mundo do cantar de pássaros, cheiro de café, bolo de laranja, cachorro preguiçoso dormindo na varanda, mas, não é bem assim, e também não é o estilo de vida da maioria de nós. Vivemos a nossa eterna batalha urbana, driblando os outros passantes, comendo e falando ao telefone, enviando e-mails dentro do supermercado, exaurindo-nos e reclamando, ameaçando a tudo e a todos com um sumiço total, férias de tudo e de todos. E seguimos sempre sonhando com dias no campo ou na praia, durante longas horas de engarrafamento diário, prometendo-nos caminhadas em que respiraremos ar puro, muita meditação, alimentação leve e saudável, aquele soninho depois do almoço…
Acorda! Não ouviu a buzina?
Bem, voltando ao trabalho, o sonho não passa. Viver uns dias fora da rotina vira ideia fixa, daquelas que se sentam ao nosso lado e ficam. Mas, cá entre nós, correr para o campo, correr nos campos, na praia, na grama, de bicicleta ou de pés descalços, não é e nunca será garantia de harmonia, de encontro com a paz, se o verdadeiro caos for de origem mais íntima. Muitas vezes, o barulho, a poluição e as sirenes até aliviam as batalhas internas, sufocam as angústias que gritam.
A solução é desintoxicar o coração. Expelir as mágoas. Remover os sentimentos de perda, ciúmes, ódios e ressentimentos. Construir caminhos para escoar as lembranças ruins, descascar as paredes encrustadas de indiferença e desamor. Desenvenenar a alma. Desejar de bom grado a felicidade alheia, até mesmo a que ainda cremos nos fazer qualquer tipo de mal ou prejuízo, fechar os olhos sempre que vier o ímpeto de lançar maus olhares, neutralizar os azedumes das críticas e comentários invejosos que nos escapam, esfregar e bater até que saia tudo o que corrói e envenena.
Uma vez vencida essa parte crucial do detox, o passeio no campo será perfeito, as buzinas serão mais amenas, a rotina terá outra perspectiva. Mas, melhor do que o café fresquinho, a goiaba tirada do pé, ou o cochilo na hora do almoço, teremos uma alma nova em folha para desfrutar e compartilhar momentos mágicos a qualquer hora e em qualquer lugar. Afinal, lugar tranquilo é aquele que recebe bem a nossa paz.

quinta-feira, setembro 10

Declare-se inocente! Não assuma culpas alheias.

Quem nunca resmungou ou ao menos pensou em se culpar por mal feitos alheios, por medo, preguiça, ou por conveniência?
– Eu não deveria ter falado isso ou aquilo. Criei tensão e deu no que deu;
– Eu deveria ter esperado um pouco mais, mesmo depois de tanto tempo;
– Eu poderia tentar esquecer aquele gesto impensado. Talvez não tenha sido proposital… nem doeu tanto assim;
– Eu gostaria de mais atenção, mas talvez eu não seja uma boa companhia…
E sim, afinal consegui me sentir culpada por tudo. Uma palavra torta, um baita de um bolo, um esquecimento, uma passada de perna, uma violência… e as coisas só se complicam, mas certamente eu poderia ter evitado, ou aliviado, ou relevado, ou tudo isso e ainda pedindo desculpas. Em mim cabe toda a culpa do mundo e eu me declaro culpada talvez para não ter que enxergar a maldade alheia, para não admitir as minhas escolhas equivocadas, para tentar desajeitadamente consertar o que?
Isso não é bondade, não é altruísmo, não é civilidade. Está bem perto de ser outra forma de manipulação. O culpado declarado desarma o verdadeiro culpado, gera piedade, mostra uma sinceridade inocente, uma delicada fragilidade. Sempre a postos para pegar para si as culpas e as responsabilidades. E sempre livrando outras caras.
– Sim, eu poderia ter feito algo para evitar isso, mas não fiz. Além de culpada, sou omissa. É tudo culpa minha.
Mas sabe o que? Dei para discordar desse modelo de vida, onde, em qualquer nível, um assume a arrumação para o outro cantarolar. Ando mesmo decidida a me declarar inocente!
Inocente por permitir a arrogância alheia no meu território;
Inocente por crer que algumas coisas podem ser resolvidas amigavelmente; Inocente por deixar o tempo passar demais;
Inocente por me sentir culpada pelo que não fiz.
Eu me declaro inocente, agora com muita malícia, a mesma que recusei antes, para não voltar atrás. Não carrego mais culpas, nem desculpas.
E tudo isso, em legítima, incontestável e incondicional defesa. Quem irá me culpar?

domingo, setembro 6

Troquei a capa pesada por um vestido soltinho

Cansei de tentar ter um argumento para tudo. Cansei de explicar e me explicar coisas que não se explicam, que não tenho capacidade de entender, coisas que muitas vezes me geraram muito trabalho e pouco ou nenhum proveito. Cansei de arrumar explicação para os tropeços alheios, desculpas para não sentir raiva, argumentos psicológicos para proteger imagens e mitos.
Me dei conta que esse universo de argumentos prontinhos é uma capa pesadona, cheia de bolsos, internos, externos, secretos… Com ela, realmente me sentia agasalhada e protegida, mas andava lenta, sem mobilidade, vasculhando como louca todos os bolsos, tentando achar as explicações perdidas no meio dos infinitos bolsos. E chegou um tempo que não sabia mais como tirar a capa, pois os zíperes emperraram, e, com má vontade tentei uma, duas vezes, e então desisti. – Sou assim mesmo – decretei.
Claro que agora não é questão invalidar os argumentos. Afinal, me custaram muito tempo e miolos para realizar algumas conclusões e alguns deles eu vaidosamente considero brilhantes. E é óbvio que são essenciais para dar sentido às discussões. Mas, reconheço que, se por um lado muitos deles são totalmente válidos, uma parcela gigantesca pode muito bem ser dispensada do acervo, liberando peso e espaço. Os mais antigos, os que não se aplicam mais, os que levam às desculpas tolas, os que não me dizem respeito mas que eu achei um jeito de me inserir…
Decidi não ousar mais tentar ter ou ser resposta para tudo e todos. Não quero ser lembrada ou reconhecida como conselheira, razoável, mediadora, nada disso. Quero ter o direito de uso do ponto de interrogação; Quero me proporcionar a liberdade de dizer: – Não sei – quantas vezes tiver vontade; Quero não me ocupar de entender o que não faço questão de entender.
Decidi portanto, arrancar e rasgar a capa pesada e com manchas do tempo e trocar por um vestidinho de alça, solto, leve e cheirando a novo. Acho até que posso vir a sentir frio, mas para poder me proteger, vou tentar um xalezinho, um esfregar de mãos, um abraço. Ou tudo isso junto ao mesmo tempo. Afinal, frio mesmo a gente só sente quando está só, isolado por certezas. Na dúvida, tem sempre alguém por perto, sentindo o mesmo.

quinta-feira, setembro 3

Desapegue, abra caminho, mostre a saída, despeça-se bem e deixe ir

A gente se apega. Se apega e muito, tanto que não sabe soltar a mão do filho quando ele quer (e precisa) andar sozinho, não sabe soltar o sorriso quando o mau humor já até foi, não quer soltar a raiva quando ela já nem está mais lá, não larga o missa inteira de ladainhas e reclamações, mesmo quando ninguém está mais disponível para ouvir, não deixa ir o rancor, mesmo quando mais nenhum sentido ele faz…
O tempo de segurar junto do peito é real, tudo o que a gente passa na vida é para realmente ser vivido, doendo ou não, é o que molda a gente, o que faz a forma única e inconfundível de cada um. Mas tudo, absolutamente tudo, até a própria vida só dura um tempo, depois passa. Quando começa a esfriar, a acalmar, dissipar, atenuar, é preciso saber o momento de soltar, deixar ir. Deixar ir a tristeza, a raiva, as desilusões, mas também as risadas, os afetos, as promessas. Deixar ir é um ato inteligente, honesto, justo. Às vezes tudo volta. Outras, não volta nunca.  E assim é, às vezes nós voltamos, outras, jamais.
Como um elástico, a gente estica até onde ele vai, mas depois esgarça, perde a forma, ou pior, volta a nós com tal violência que deixa marcas doloridas. Saber o momento de largar é proteção e alívio. É garantia de mãos livres para alcançar e tocar no que tiver vontade.
Seja o que for, se já está passando, desapegue, abra caminho, mostre a saída, despeça-se bem e deixe ir.  Ao invés de conviver às turras com o que ansiava por ir embora,  decrete o fim da estadia. Sacuda as colchas, bata os tapetes, coloque os travesseiros no sol,  desfaça as tensões,  ajeite a postura, aproveite a porta aberta e siga sua vida. E mantenha por perto somente o que não estiver de passagem.

quarta-feira, setembro 2

Ela dança como se não houvesse ontem

Ela lembrava de todas compras que precisava fazer naquele dia. Também lembrava das notas que eu precisava tirar para passar de ano. Ela lembrava de uma malcriação feia que eu fiz e a magoou muito, em uma noite de Natal. E lembrava que a conta do telefone iria vencer no dia 16. E por toda a vida foi assim, a mulher que foi a minha referência,  que trabalhava fora, que cuidava da casa, era vaidosa e bem cuidada, bastante religiosa e faladeira como toda geminiana é. Herdei o signo dela, mas nem tanto a memória. Preciso ter tudo anotado e rabiscado depois de cumprido.
Hoje, ela ainda lembra de mim, mas me recebe com um sorrisão e fala alto: Minha mamãe chegou! Não lembra mais a mulher que foi, não lembra quem é direito, não lembra de quase nada. Hoje só gosta de dançar. E dança muito. E quase não dançava quando era mais nova, quando lembrava de tudo. Era sisuda, brava,  não tinha conversa mole com ela.
Um dia, ela esqueceu uma coisa. No outro, falou uma bobagem que fez todos rirem. E a mulher sisuda aos poucos foi se desfazendo, e dessa mulher agora quase nada resta. Em seu lugar, mora uma criança de 86 anos, que dá risada quando se dá conta que está de fraldas, que abraça e beija qualquer pessoa que queira seu carinho, que esqueceu e fez todos esquecerem de quem ela realmente já foi.
No começo foi muito difícil, quase impossível suportar. Inúmeras tentativas de trazê-la de volta. Mas de onde para onde? E ela olhava com os olhos perdidos, sem nada entender. E todos sofriam. Mas o tempo passa, a doença avança, e a gente finalmente entende que a guerra acabou. E não é uma guerra propriamente perdida. É acabada mesmo, porque um dos lados simplesmente deixou de lutar e aceitou, e aprendeu a conviver com as mudanças que o lado mais forte imputou. Nós, os parentes, a torcida,  é que demoramos mais do que deveríamos para perceber o tratado de paz que a vida impôs.
A mulher que me conhece melhor do que ninguém, hoje por vezes me desconhece, não mora mais conosco, precisa de cuidados, mas a cada visita eu conheço uma mulher nova, mais infantil, mais inocente. E em todas essas mulheres, eu me reconheço um pouco. Continue dançando, Mãe!

Mostre suas unhas para o predador

Cada qual reage de um jeito ao perigo iminente. Mais do que isso,  cada um sabe o leque de seus perigos pessoais, o que lhe aterroriza, lhe mortifica, paralisa, deixa os medos à mostra.
Minha experiência particular é de não reação total, um completo estado de imobilidade que, no mínimo, irrita até o próprio agente do perigo. Mas também me irrita, me mostra que aceito como justa a ameaça que me chega, que obedeço a uma palavra ou mão mais fortes do que as minhas.
Pais e filhos predadores…
Amizades predadoras…
Carreiras predadoras…
Amores predadores…
Palavras e promessas predadoras…
Sonhos, ilusões, momentos, olhares predadores…
…e a lista é interminável e muitas vezes inconfessável.
E sem nos aperceber, seguimos pela vida alimentando e engordando nossos predadores, aprendendo a não contrariar, a preferir a aceitação e a mudez, a anulação à reação.  Temos medo do que nos possa acontecer. Temos medo do abandono, da rejeição, do ridículo, da opinião e julgamento alheios, dos rompimentos.
Somos quase sempre assim, se não somos os predadores, somos as vítimas. E geralmente desempenhamos esse papel com um talento invejável, tanto que acreditamos ser um estado normal esse, de coração assustado, acelerado.
Mas, se um dia olhamos de frente para esse predador e resolvemos que não pode mais ser do jeito que é? Será que ele entende e se compadece? Temos tempo e vontade de aguardar pela mudança? Seria justo esperar que se pacifique o predador que nós mesmos alimentamos e fortalecemos?
E quantas vezes olhamos para dentro de nós mesmos e buscamos força? Mas será a força uma solução aceitável? Vamos travar duelos com nossos predadores? Se muitos deles nós amamos e queremos na nossa vida, o que fazer?
Talvez o caminho seja a conquista de um respeito que há muito se foi. O respeito que todos costumam bater no peito e anunciar que “é bom e eu gosto”. Sim e eu também gosto desse mesmo respeito e se preciso for, vamos mostrar como as  unhas estão afiadas para cada predador, para que pense duas vezes antes de vir para cima com todos os seus perigos.  Que considere vir para o lado, sem machucar, sem atropelar, pedindo a devida licença e aguardando a resposta.
E na dúvida, mostre sempre as suas unhas. Se for um predador, recuará. Se não for, dirá que estão bonitas. E ainda poderá vir a ser uma linda história!